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«Afeganistão: onde ir à escola é um sonho»

Na zona leste do Afeganistão, a Escola Shawl Pacha tinha tudo para ser um projeto condenado à nascença. Situada em Nangarhar, província fronteira ao Paquistão e onde o cultivo de ópio tem crescido nos últimos anos, a escola ergue-se numa das zonas mais conservadoras do país. No seio das famílias, a lei da tribo a que se pertence sobrepõe-se à lei do Estado.

 

Não muito longe da escola, as montanhas de Tora Bora remetem o visitante para uma das épocas mais sinistras do Afeganistão. Foi nesse emaranhado montanhoso que Osama bin Laden se escondeu, após o início da guerra declarada pelos EUA, em outubro de 2001. Ainda hoje, a região é bafejada por uma forte influência talibã. O regime dos “estudantes” caiu, mas os seus valores continuam enraizados em muitos domínios da sociedade afegã.

 

Ali, como um pouco por todo o Afeganistão, frequentar a escola não é um imperativo da infância. Muito menos se – como no caso da Escola Shawl Pacha, financiada pela AMI –, a escola tem associada uma organização estrangeira. Ainda que essa relação em nada interfira no ensino que lá é ministrado, muitos locais temem as reais intenções “do estrangeiro” e os valores que ele quer incutir nas crianças, sobretudo a nível religioso.

 

Tive a oportunidade de visitar a Escola Shawl Pacha em abril passado quando me desloquei ao Afeganistão em reportagem para o “Expresso”. Ali percebi que a haver desconfiança em relação ao projeto, essa fora apenas inicial. Hoje, a comunidade confia em quem gere a escola – Mina Wali, uma afegã que se refugiou nos EUA após a invasão soviética e regressou após o 11 de setembro com vontade de fazer algo pelo seu povo – e está grata ao contributo português que a tornou possível.

 

Inaugurada em abril de 2008, a escola é hoje frequentada por mais de 500 crianças, de ambos os sexos. Em apenas três anos de funcionamento, a escola garante já seis anos de escolaridade – quase o dobro da média nacional que, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, não vai além dos 3,3.

 

Nas escadas que dão acesso à entrada da escola, Said, o “manager”, aponta os prados verdes em redor: “Todas estas terras pertencem à Mina. Queremos aumentar a escola! Queremos ter mais turmas! Precisamos de mais ajuda!”

 

As meninas têm aulas de manhã, os rapazes da parte da tarde. Este ano letivo, e pela primeira vez, o número de alunas superou o dos alunos – uma enorme conquista num país considerado, recentemente, num relatório da Fundação Thomson Reuters, o pior de todos para as mulheres viverem.

 

Visito a escola durante o período da manhã. Entro numa sala onde as carteiras estão a abarrotar. Acomodam-se três meninas no espaço destinado a duas, sem que isso belisque a atenção com que escutam o professor. (Eis outra conquista desta escola: há docentes do sexo masculino a ensinar turmas femininas, o que não é propriamente a regra no Afeganistão. O inverso, porém, não acontece.)

 

Said guia-me pela escola e faz-me entrar em todas as salas. Numa delas, pergunta à turma: “O que querem ser quando forem crescidas?” As meninas dão largas aos seus sonhos: “Professora!”, “Médica!”, “Engenheira!” “Cientista!”

 

É pouco provável que estas alunas tenham, alguma vez, ouvido falar de Fawzia Koofi. Na autobiografia “Às minhas filhas, com amor…” (Editora ASA, 2011), esta deputada afegã – a primeira mulher a ser eleita vice-presidente da Assembleia Nacional do Afeganistão – recorda como, nos anos 1980, só foi autorizada a ir à escola após a morte do pai, que se opunha à educação escolar das filhas, e após a mãe ter batido o pé às objeções dos irmãos rapazes.

 

Conheci Fawzia em fevereiro deste ano, quando passou por Lisboa para promover o seu livro. Então, falou-me da sua determinação em contribuir para a mudança de rumo do seu país. “Em 2014, quero candidatar-me à presidência do Afeganistão. As pessoas votam em quem trabalha para que haja mudanças e melhorias na sua vida quotidiana: clínicas e escolas, por exemplo, para que as crianças não tenham de andar horas a pé para ir às aulas.”

 

Em frente à Escola Shawl Pacha, há uma pequena ponte, construída com dinheiros da escola, sobre um riacho lamacento, que encurta a caminhada das crianças. Lá dentro, as salas estão despojadas do mais básico material didático e nem sempre há mesa para o professor. Numa sala, circunstancialmente transformada em arrecadação, há caixotes empilhados com dádivas provenientes de todo o mundo – desde cadernos oferecidos pela UNICEF a biscoitos energéticos doados pelo “povo do Japão”.

 

De seis em seis meses, a escola oferece um pedaço de tecido azul a cada criança para que se costurem uniformes novos. Esse gesto, para além de criar um sentimento de pertença dos alunos em relação à escola, impede que as roupas do dia-a-dia se rompam e poupa as famílias de custos. Ou não fosse o Afeganistão um dos países mais pobres do mundo: voltando ao IDH das Nações Unidas, ocupa o 155º lugar num ranking de 169 países. A esperança de vida à nascença fica-se pelos 44 anos.

 

Estima-se que apenas 6,7 dos cerca de 30 milhões de afegãos tenham acesso à rede elétrica. Perante este facto, ficamos com a sensação que em vez de cadernos de vários formatos e lápis de todas as cores, aquilo que porventura fará mais falta são meias quentes para ajudar a passar os invernos rigorosos e lanternas a energia solar (a pilhas colocariam o problema do carregamento), que garantam condições mínimas para as crianças estudarem em casa.

 

Em muitas zonas do Afeganistão, ir à escola não é um direito, mas antes uma aspiração. Na região de Cabul, por exemplo, a escola secundária de Pol-e-Charki acolhe cerca de 5500 alunos, divididos por 140 turmas. A maioria tem aulas… no recreio, uns debaixo de uma cobertura de zinco, outros a céu aberto. A situação tem vindo a melhorar graças à intervenção do contingente português que já colaborou na construção de 32 salas.

 

As infraestruturas são importantes, mas sobram barreiras culturais por derrubar. No fim da minha visita, pergunto a Said qual a necessidade mais urgente. “Precisamos de subir o muro à volta da escola. As meninas estão a crescer e a comunidade não gosta que sejam vistas desde a rua…”

 

Margarida Mota, Jornalista do Expresso

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